Subtítulo: Projeto ‘Libert’Arte’
Resumo: Como um grupo de reclusos conseguiu libertar-se através da arte.
A dança como meio de reabilitação para uma reinserção mais fácil.
Cada vez mais observamos um crescente interesse por matérias associadas ao crime. Quer seja pelas séries e filmes de ficção, pelos documentários true-crime, e pelos casos reais de crime que têm tanto espaço nos media nacionais e internacionais, é de esperar que existam ideias convergentes sobre como combater o crime e, principalmente, como lidar com as pessoas que o cometem.
A resposta encontrada na maioria das vezes é conter e punir através do encarceramento. No entanto, um elemento da punição que é muitas vezes esquecido é a reabilitação. Reabilitar pessoas condenadas por crimes em prisões significa não só aumentar as suas chances de reabilitação social, mas também garantir o seu bem-estar e o da comunidade em geral.
Garantir o acesso a programas de reabilitação durante o tempo na cadeia constitui uma necessidade ainda maior quando consideramos o contexto e o ambiente prisional. Os estabelecimentos prisionais são, por natureza, caracterizados pelo isolamento físico e mental e pela falta de privacidade, autonomia e atividades estimulantes. Ora, estes aspetos podem afetar negativamente o bem-estar dos reclusos, mas também podem conduzir ao surgimento ou agravamento de problemas de saúde mental e até à adoção de comportamentos sociais inadequados. Assim, a oferta de recursos para combater estes efeitos torna-se essencial para assegurar o sucesso destes indivíduos no seu regresso à comunidade.
Reconhecendo a criminologia como um campo bastante interdisciplinar – com recurso a áreas como a sociologia e a psicologia – não é de estranhar que este esteja constantemente à procura de programas e intervenções de reabilitação alternativas às tradicionais de modo a acompanhar as pessoas reclusas e responder às suas necessidades e interesses. Deste modo, este campo abre portas a abordagens de reabilitação por si mesmas interdisciplinares.
Vários estudos têm-se dedicado a analisar e compreender o impacto de intervenções e programas de reabilitação – tradicionais e alternativas – nos seus participantes, avaliando o seu sucesso e estabelecendo a sua importância. Entre outros, contam-se projetos de horticultura, de jardinagem, de yoga e de meditação nas prisões. Estes modelos de reabilitação alternativa têm sido associados a um evidente aumento na autoestima dos participantes, a benefícios sócio-emocionais e a uma melhor saúde física e mental, entre outros. Contribuem positivamente para o processo de reabilitação e para a reintegração social e, consequentemente, para a redução da reincidência criminal.
Continuando no tema da interdisciplinaridade da criminologia e das intervenções e programas de reabilitação alternativas, uma disciplina que pode estar presente dentro dos estabelecimentos prisionais é a arte. Vários estudos indicam o seu impacto positivo nos participantes, com benefícios como a redução de stress, aumento da autoestima, regulação emocional, aumento e desenvolvimento de competências sociais e aumento do bem-estar.
Reconhecido o impacto positivo que estes programas de arte têm em meio prisional, foi implementado o projeto ‘Libert’Arte’ no Estabelecimento Prisional da PJ de Lisboa. Promovido pela Dar a Mão, duas alunas voluntárias do curso de dança da faculdade de motricidade humana, implementaram, ao longo de 32 sessões, este projeto de dança, que contou com 16 participantes ao longo de 4 meses.
O desenvolvimento deste projeto teve em consideração a adesão dos participantes, mas também a sua colaboração e integração no mesmo. Foram desenvolvidas atividades de integração que contribuíram não só para a construção de confiança entre o grupo, mas também para incentivar o pensamento crítico, a resolução de problemas e a criatividade dos participantes.
O ‘Libert’Arte’ compreendeu 4 temáticas adicionais: emoções, ritmo e musicalidade, dança criativa, e estilos de dança; contou, ainda, com a criação, preparação e produção de um espetáculo final com 12 dos participantes.
As atividades desenvolvidas neste projeto permitiram, principalmente, o uso da comunicação não-verbal dos participantes através do recurso a expressões corporais para comunicar e transmitir sentimentos, pensamentos e emoções. Este aspeto é particularmente importante para esta população visto que enfrenta dificuldades em exprimir-se verbalmente. Através da expressão artística, estas atividades permitiram e encorajaram a abertura emocional. Adicionalmente, este projeto proporcionou um espaço de reflexão e introspecção aos participantes, que pode motivar um processo de mudança nos seus comportamentos e atitudes.
Para além de um espaço de reflexão e introspecção, o projeto ‘Libert’Arte’ criou também um espaço de partilha e confiança, permitindo a partilha de momentos de vulnerabilidade num contexto que é caracterizado por se aproveitar da fraqueza e vulnerabilidade, e por promover a insegurança, desconfiança, e comportamentos violentos e de alerta. A vulnerabilidade na partilha promoveu a criação e aprofundamento de relações entre o grupo e de cada um se dar a conhecer de outra maneira, mostrando outra perspetiva de si. O projeto apoiou também o trabalho de equipa, não só para estimular o desenvolvimento de competências sócio-afetivas e de outras como a resolução de problemas, comunicação e organização, mas também para promover a união e colaboração entre participantes.
O uso da dança possibilita também ao praticante o sentimento de liberdade. Este sentimento é particularmente importante para pessoas reclusas. Num ambiente que é notavelmente pesado e de rotinas, a dança torna-se numa atividade não só estimulante para quebrar a vida prisional, mas também numa atividade que ajuda os seus praticantes a libertarem-se do espaço físico e mental ao qual estão sujeitos através da conexão com os seus corpos e emoções.
Na recolha de resultados deste projeto, verificámos que o ‘Libert’Arte’ promoveu o empowerment dos seus participantes, tal como o aumento do seu bem-estar e auto-estima. Além disso, os participantes revelaram que o projeto foi bem sucedido em proporcionar a sensação de liberdade e o sentimento de esperança para o futuro. Os participantes evidenciaram, também, como o projeto os ajudou a desenvolver as suas relações tanto interpessoais como intrapessoais.
Apesar dos benefícios que a implementação de programas, projetos e intervenções de reabilitação alternativas com abordagens interdisciplinares têm evidenciado, verifica-se uma carência na sua implementação e apoio. A falta de compreensão e disponibilidade de recursos impede o desenvolvimento de respostas alternativas correspondentes às necessidades das pessoas em reclusão.
Reconhecendo as dificuldades presentes nos estabelecimentos prisionais, os projetos de reabilitação alternativas, e especialmente os projetos baseados em arte, podem ser bastante importantes para chegarem aos que apresentam dificuldades de aprendizagem, baixa escolaridade, e até resistência a participar em projetos de reabilitação tradicionais.
Proposta de testemunhos para incluir na periferia do artigo:
- Comentários dos participantes sobre o projeto:
- “Sentir-me livre”
- “Creio que ainda tenho uma esperança de uma vida lá fora”
- “(…) Fortificar (fortalecer) relações; conhecer o caráter da pessoa – coisa que não podemos fazer no pátio”
- “This project helped me get in touch with your emotions and express them”
- “Posso dizer que aprendi a encontrar o meu ritmo para a vida”
- – To get in touch with your emotions and learn to express them, also dancing without drugs
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